Saturday, December 15, 2007

IPHAN 70 anos

Vigor aos 70
Iphan atinge a maturidade ao ampliar a compreensão de patrimônio para os valores culturais, sem abandonar os ideais da conservação material

Celina Côrtes -Jornalista da Revista de História da Biblioteca Nacional

“É muito sabido que um grupo de moços brasileiros pretendeu tirar o Brasil da pasmaceira artística em que vivia (...) Tinham de transportar a consciência nacional para o presente do universo. Muito bem. Mas onde estava essa consciência nacional?”
O questionamento é de Mário de Andrade (1893-1945), ícone do modernismo brasileiro, responsável pelo anteprojeto que deu origem ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Criado em 1937, em plena ditadura do Estado Novo de Getulio Vargas, o Instituto, que nasceu Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), chega aos 70 anos com vigor de adolescente. Um dos responsáveis por essa oxigenação é justamente Mário de Andrade. O poeta, romancista e folclorista foi um visionário, e parece ter respondido à própria pergunta. A “consciência nacional” estava para ele também no conjunto de práticas, representações, técnicas, objetos e lugares que integravam o patrimônio cultural, como, por exemplo, as artes popular e ameríndia. Hoje esta noção é chamada de patrimônio imaterial, e é seguida pela vanguarda da área de preservação no mundo.
Mais de 60 anos depois, um dos itens destacados por Mário de Andrade como obras de arte patrimoniais, a arte ameríndia, foi a primeira candidata encaminhada à Unesco, em 2002, para a nova leitura da Proclamação das Obras-Primas do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade. Nesse processo, entrou para esse moderníssimo hall da Unesco a Arte Kusiwa, pintura corporal e arte gráfica dos wajãpi (lê-se uainhampi), índios que habitam os confins do estado do Amapá, no extremo norte do Brasil.
A categoria de bem imaterial não era sequer mencionada nos projetos patrocinados pela Liga das Nações, como as convenções de Haia (de 1899 a 1907) e o Pacto de Roerich, de 1935. No Brasil, esse aspecto do anteprojeto só passaria a valer com a Constituição de 1988, que ampliava a noção de bem monumental e reconhecia como bem cultural as edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais, provenientes das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras. A proteção só se concretizaria em 2000, após ser regulamentado o decreto que instituía o “registro de bens culturais de natureza imaterial” e criava ainda o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.
A novidade, entretanto, já nasceu com problemas. A intenção era prestar uma homenagem à cultura indígena elegendo o Quarup, ritual fúnebre de tribos do Alto Xingu, no Mato Grosso, como primeiro registro. Estava tudo alinhavado quando o então diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho, trouxe a má notícia de que as tribos não haviam chegado a um acordo, por discórdias entre os mais velhos e os jovens. Ficou decidido, então, que o primeiro registro de patrimônio imaterial do Iphan seriam as Paneleiras de Goiabeira, no Espírito Santo, no ano de 2002. A arte de confeccionar panelas de barro é uma atividade exclusivamente feminina. As ceramistas usam uma técnica de origem indígena, caracterizada pela modelagem manual, queima a céu aberto e impermeabilização com tintura de tanino. Para garantir a continuidade do ofício, o registro também considerou a preservação do Vale do Mulembá, de onde é retirada a matéria-prima para a confecção das peças.
Para a museóloga Cláudia Márcia Ferreira, diretora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do Iphan e do Museu do Folclore, a nova categoria nada mais é do que uma tentativa de atender às necessidades da sociedade contemporânea. “O conceito não está dentro das instituições; é um processo em construção, uma resposta à demanda social, nacional e internacional pela ampliação do conceito de patrimônio”, define. Cláudia Márcia acredita que o intenso desenvolvimento urbano no período de criação do Iphan gerava uma preocupação com a preservação do patrimônio material. “Hoje não é mais isso. Trata-se de uma resposta saudável de uma instituição que está antenada, em busca de novos significados”, analisa. Citando outro exemplo, Cláudia observa que a entrada do samba-de-roda do Recôncavo Baiano, em 2004, para o Livro de Registro das Formas de Expressão – um dos quatro livros criados para o registro do patrimônio imaterial – “significa que aquele processo, aquele saber fazer, o tocar, o dançar constituem um bem, um valor, um patrimônio. Sobre ele o estado não tem tutela”. Um plano de salvaguarda abriu oficinas para que os jovens do Recôncavo pudessem se apropriar da técnica de confeccionar a viola-machete, cujos mestres estão morrendo de velhice. A viola, de origem portuguesa, é considerada o instrumento mais importante do samba-de-roda do Recôncavo. “Já que o Estado não pode dar proteção absoluta, a idéia é, pelo menos, garantir a maestria”, acrescenta Cláudia Márcia.
Os bens imateriais são registrados em quatro tipos de livros, que agrupam as categorias saberes, celebrações, formas de expressão e lugares. Existem hoje dez registros de bens imateriais. O samba do Rio de Janeiro acabou de entrar para o Livro de Registro das Formas de Expressão. O próximo da lista é o modo de confecção de queijo artesanal no interior de Minas Gerais.
Para Luiz Fernando de Almeida, presidente do Iphan, ao completar 70 anos o Instituto passa pelo desafio de expandir o conceito de patrimônio cultural. Embora esse sopro de contemporaneidade contagie a atmosfera do Iphan, há quem considere que a criação da consciência da preservação do patrimônio seja o mais importante legado da instituição. Na opinião de Cecília Londres, funcionária aposentada do Iphan e conselheira, por notório saber, do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, “hoje existe a noção de que há valores que têm de ser preservados, acima dos interesses econômicos e políticos.”
Foi essa consciência que desencadeou o tombamento das cidades históricas entre 1938 e 1945, processo que esconde episódios que poderiam inspirar roteiros de filmes de aventura. Um deles aconteceu quando o chefe da seção de Artes da Divisão de Estados e Tombamento, Edgar Jacinto, participou do tombamento de São João del-Rei, em 1938. Na época, era comum ver hansenianos se deslocando a esmo pelo interior do país. Quando uma leva dessas passava pelos arredores de São João, um grupo contrário ao tombamento – apoiado pela imprensa local – planejou recolher os doentes em um sobrado para contaminar os “inimigos”. Por sorte, a idéia não vingou, sendo abortada a tempo.
Entusiasta da proteção do patrimônio material, Aloísio Magalhães (1927-1982) criou em 1979, no âmbito do Iphan, a Fundação Pró-Memória. Além da agilidade para contratar pessoal, a fundação passou a incorporar uma nova dinâmica para os museus. A obstinação de Magalhães, porém, rendeu-lhe muitas críticas dos que temiam que a preservação de construções antigas atrapalhasse o desenvolvimento urbano. “Preservar não é engessar, muito pelo contrário. Manter os acessos à diversidade da memória é considerado um valor histórico e estético, que dá qualidade de vida e pode tornar a cidade mais agradável e interessante”, reage Cecília Londres.
Exemplos bem-sucedidos não faltam, tanto no Brasil como no exterior. Barcelona, impulsionada pelas Olimpíadas, conseguiu manter seus centros históricos e bairros medievais sem prejudicar o desenvolvimento. Em Belo Horizonte, foi inaugurado em 2005 o Museu de Artes e Ofícios, com mais de duas mil peças do século XVIII ao início do XX, em arrojado projeto do arquiteto francês Pierre Catel. O projeto recuperou uma região antes totalmente degradada, revitalizando a Estação Central e seu entorno.
“A preservação tem de ser renovada a cada geração e assumida pelas diferentes administrações. Por mais que existam leis, se há um centro histórico abandonado, dificilmente ele será preservado”, adverte a conselheira, ressaltando que a política de prevenção não pode ser pensada de forma isolada e precisa ser inserida nas políticas públicas e nos planos diretores.
Durante a década de 1980, a noção de patrimônio foi ampliada e passou a ser pensada não mais como preservação de construções e objetos históricos, mas como fonte de produção de conhecimento. Até então, predominava o conceito de que o valor era intrínseco ao bem material, como ocorre, por exemplo, com as obras do Aleijadinho. Com a mudança de concepção, foi atribuída maior importância ao homem, às técnicas e às tradições que se manifestam na obra.
A arquitetura da orla da Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, é um exemplo de patrimônio salvo da descaracterização pelo tombamento. A primeira construção a sofrer intervenção foi o imponente Copacabana Palace Hotel, erguido pela família Guinle entre 1919 e 1923, quando a região ainda era um grande areal. O elegante imóvel hospedou os maiores artistas de Hollywood – passaram por lá Marilyn Monroe, Rita Hayward e Clark Gable, entre outros. Na década de 1980, entretanto, estava ameaçado pela construção de um anexo que iria descaracterizar completamente suas linhas neoclássicas. A possibilidade de venda do Copacabana Palace foi a gota d’água para acelerar seu tombamento, que aconteceu em 1985.
O Forte de Copacabana passou por situação semelhante. A construção corria o risco de vir abaixo para dar lugar a um resort comandado pelo milionário americano Donald Trump. “Eu vi o projeto, ele existiu de verdade”, lembra Cecília Londres. A pressão do Exército pela preservação do Forte foi decisiva para o tombamento, que saiu em 1990.
O dinamismo que impulsionou os museus brasileiros nos anos 1990 se manteria intenso na década seguinte. Em 2003 foi criado o Departamento de Museus e Centros Culturais (Demu) do Iphan, que repercutiu não só no fortalecimento dessas instituições, mas também na multiplicação pelo país de centros de graduação e pós-graduação em Museologia. “Os cursos criam um cenário propício ao desenvolvimento de novas abordagens teóricas e práticas e apontam para o amadurecimento da Museologia no Brasil”, comemora José do Nascimento Júnior, diretor do Demu. Para se ter uma idéia, no início do século XX havia 12 museus no país. Hoje são 2.442 unidades – 40 delas do Iphan –, visitadas por 20 milhões de pessoas por ano.
A evolução da compreensão do que é e para que serve o museu é, portanto, uma tendência permanente. “Desde os museus ao ar livre nos anos 70, passando pelos ecomuseus e, recentemente, pelos museus comunitários, a perspectiva mudou”, registra o museólogo Cícero Antonio Fonseca de Almeida, professor da Escola de Museologia da UniRio.
O próximo passo está na agenda do governo federal: é a criação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Será uma autarquia com autonomia administrativa e financeira que atuará em sintonia com o Sistema Brasileiro de Museus. “Farão parte de sua estrutura os museus hoje ligados ao Iphan”, informa Nascimento Júnior, do Demu.
A história da preservação do patrimônio no Brasil – desde o tombamento das construções históricas até a expansão dos museus – começou em 1936, quando o então ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema (1900-1985), pediu a Mário de Andrade para elaborar o anteprojeto de proteção ao patrimônio artístico e cultural, por sugestão de seu chefe-de-gabinete, o poeta Carlos Drummond de Andrade. Os dois primeiros capítulos do documento estabeleciam o tombamento como principal recurso jurídico de proteção aos bens culturais. Esse tipo de recurso era considerado um avanço – o direito internacional, até meados do século XIX, não garantia, de forma universal, a proteção aos bens culturais.
No Brasil, as Constituições de 1824 e 1891 eram também omissas em relação ao tema. Só a partir da Carta Magna de 1934 foi atribuída à União e aos estados a responsabilidade de proteger as belezas naturais e monumentos de valor histórico ou artístico de obras de arte. Parece paradoxal que as normas legais para o tombamento tenham sido criadas por um decreto-lei. A moderna iniciativa – promulgada em 1937, em plena ditadura do Estado Novo – foi influenciada e apoiada por alguns dos artistas e intelectuais responsáveis pelo Movimento Modernista, nascido em 1922.
Ao mesmo tempo em que suprimia a representação política e impunha uma rigorosa censura, o Estado Novo assumia a função de organizador da vida social e política. Para sorte dos rumos da cultura no Brasil, o regime abriu um grande espaço para a participação de intelectuais, que não hesitariam em assumir a função de ideólogos. Ao lado de Mário de Andrade, um dos participantes das propostas que orientaram os padrões de conduta em torno do patrimônio foi Lúcio Costa, direcionado e orientado pelo fundador e primeiro presidente do então Sphan, Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969) (confira o artigo da página 42). Com seu carisma de profeta, Lúcio Costa era considerado uma espécie de teórico do patrimônio.
“Ao contrário de outros países, no Brasil – tanto em 22 quanto em 36 – os empenhados na renovação foram os mesmos empenhados na preservação. Em 22, Mário (de Andrade), Tarsila (do Amaral), Oswald (de Andrade) & cia, enquanto atualizavam internacionalmente nossa defasada cultura, também percorriam as cidades antigas de Minas e do norte na busca antropofágica das nossas raízes. Em 1936, os arquitetos que lutaram pela adequação arquitetônica às novas tecnologias construtivas foram os mesmos que se empenharam, com Rodrigo Melo Franco de Andrade, no estudo e salvaguarda do permanente testemunho do nosso passado autêntico”. Assim como o Iphan, o comentário feito pelo arquiteto em Registro de uma vivência também permanece atual.

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